Meu maior medo é ser burro: a inteligência como única alternativa aos inseguros
Se não posso ser quem sou, que ao menos eu seja brilhante
“Queria que minha filha fosse como você”, disse-me um desconhecido quando eu era adolescente, apenas porque eu lia um livro pegando sol. Por dias, senti um profundo lisonjeio com essa abordagem inesperada. Afinal, eu era inteligente ao ponto de um pai querer um filho como eu — o sonho de qualquer garoto inseguro.
Até nas minhas memórias mais antigas da infância, já enxergo batalhas contra as expectativas sobre meninos: tem que ser macho assim que aprende a falar. Detestava futebol, mas tentei ser goleiro para agradar meus pais. O jogo era tão entediante que eu sofria gols sem nem notar. “Ainda tem jeito, ele pode tentar o jiu-jitsu!”, pensou meu pai, faixa marrom. Mas, nessa tentativa, seus esforços foram vergonhosamente infrutíferos. Ao ouvir o tocar do gongo anunciando o início da aula, encenei um escândalo na frente de todos: arranquei meu kimono enquanto gritava “NÃO QUERO! NÃO QUERO!”. Depois de ver que o filho tímido preferiu ficar pelado diante de dezenas de crianças e adultos a lutar jiu-jitsu, o velho desistiu.
Essas batalhas merecem destaque, mas a guerra foi longa, de filmes da Barbie até ser a Vampira dos X-men. Eu até curtia Power Rangers e tentar manobras radicais de bicicleta com outros meninos da rua, mas, para os adultos, um moleque gostar de rosa parecia uma sentença irrevogável de inadequação.
“A escola é uma fábrica de subjetividade. Ela te ensina desde pequenininho que se você rebolar, vai acabar com a cabeça no vaso sanitário.” — Rita von Hunty para GQ Portugal
Quando tudo aparentava perdido na minha guerra contra a decepção de não ser macho, encontrei a inteligência como arma — ou melhor, como escudo. Para minha sorte, meu desempenho escolar era excepcional e meu desejo por aprender era algo que os adultos não podiam ignorar. Percebi isso cedo, antes mesmo da alfabetização. “Ele só anda com as meninas, mas é o melhor da turma!”, “ele não se interessa por carros ou motos, mas já sabe inglês!”, “ele nunca teve uma namoradinha, mas lê vários livros por ano!”. Com isso, ainda criança, comecei a usar os elogios ao meu intelecto para cobrir as pungentes rachaduras na minha autoestima.
Assim, achei o meu valor: ser inteligente. Apesar de tudo, pelo menos sou inteligente.
Depender de algo tão frágil me custou caro. O ensino médio chegou e, de repente, eu não era mais o melhor. Estudar deixou de ser fácil e o vestibular me esperava como a morte aguarda um paciente terminal. Minha débil autoestima foi abalada por algumas notas ruins e pela ansiedade de não entrar em uma boa universidade, mas consegui superar! Não cheguei nem perto de uma recuperação e passei para uma federal. O orgulho da família! — Apesar de ser ruim de bola—. Com isso, as rachaduras se intensificaram, mas continuavam cobertas.
Pouco tempo depois, minha dependência doentia pelo sucesso acadêmico piorou. Na universidade, as disciplinas eram assustadoramente mais difíceis, e eu estava longe de ser o melhor da turma — também estava longe de ser o pior, mas não era suficiente. Me esforçava para fazer perguntas boas para os professores e me alimentar de um “boa pergunta!”, floreava meus trabalhos para conquistar um “você escreve bem!”. Catei migalhas, mas reprovei em uma disciplina — maldita Química Inorgânica! — e as rachaduras se expuseram como nunca.
Pela primeira vez, me senti burro. Eu não era nada sem as notas brilhantes e os elogios à minha cognição. Mesmo com bigode na cara e idade legal para beber, eu permanecia sendo aquela criança desesperada para impressionar os adultos com minha inteligência. Continuava desesperado para mascarar a viadagem com meu conhecimento.
A faísca que me salvou da ruína foi a autoaceitação. No final do ensino médio e, principalmente, na vivência universitária, desenvolvi gradativamente um senso crítico para questionar por que eu me escondia. Passei a ver que não era errado ser quem eu era. Conheci muita gente que se orgulhava de não ser quem a sociedade impunha que eles fossem, e isso me impulsionou. Também, tragicamente, reconhecia em todas as pessoas LGBTQIAPN+ à minha volta uma insegurança muito familiar.
Demorou, mas comecei a me orgulhar da minha delicadeza, que antes era julgada de fraqueza. Hoje, não me envergonho de não ser atlético — na verdade, amo nadar e fazer trilhas. Vez ou outra, consigo vencer a timidez e conversar de forma espontânea e falo como quero. Gosto de muitas “coisas de menina” e desencanei faz tempo. Eu dependia da inteligência porque era a única parte de mim que eu aceitava.
Não me curei, claro. Sou um acadêmico, e a qualidade do meu trabalho depende das minhas habilidades intelectuais obterem aprovação alheia. É comum me sentir inseguro e ainda tenho pânico de parecer burro. Ainda sinto medo de decepcionar minha família e carrego o peso de ser o primeiro a frequentar uma universidade pública. Mas, ao menos, sei que não é só uma coisa que define meu valor.
A melhora é progressiva, bem como a autoaceitação. Há dias melhores e outros piores. No entanto, sei que querer ter um filho como eu pode ser muito bom, sim. E não por “ser inteligente apesar de ser viado”, mas por causa disso também.
mto bom! me lembrou “a obrigação de ser genial” da Betina González em que ela diz que não basta ser boa, tem q ser genial e isso acontece sobretudo com as mulheres e com as pessoas dissidentes de gênero e sexualidade 😮💨
Quando eu comecei a crescer e não ser mais a numero um da turma, eu pensava constantemente "se nem isso eu consigo ser mais...então oq me sobra?". E essa sensação é pungente.
Não importa muito que você não é o pior, você quer ser sempre ser o MELHOR e nada abaixo disso é o suficiente. É uma vida de "eu deveria ser mais".
Me identifiquei muito, e assim como você, aos poucos, vou contornando essas auto avaliações que a gente mesmo continua se impondo.