Tenho vergonha de dizer que sou comunista. Aqui, explico minhas razões com certo desespero, na esperança de que ninguém me leve muito a mal.
ACUSAÇÃO
Aos assombrados pelo fantasma do comunismo, piso em ovos para proclamar-me socialista. Isso se deve, principalmente, à miserável falha da esquerda em fazer trabalho de base e se conectar povo de fato. Assim, o imaginário comum é acusar de comunistas essa galera de vermelho que canta Lula-lá e curte fancam do “Xandão”. Uma piada. Meu temor é, portanto, acharem que sou desse clube. Um questionamento justo, porém, é: o que eu tenho feito para cumprir essa necessidade urgente da esquerda radical de chegar “ao povo de fato”?
A resposta é simples: absolutamente nada. Mas sei apontar os erros! Quanto ao resto, o pique está com os outros.
Nessa semana, na universidade, esbarrei com um sindicalista conversando sobre cortes orçamentários nas instituições públicas federais com o segurança para quem digo “bom dia!” diariamente. O sindicalista vestia uma camisa com a cara do Lenin estampada. Comunistão de respeito, lá dialogando diretamente com outro trabalhador, conscientizando. E eu, furtivo, os cumprimentei apressadamente e segui meu caminho. Em uma ironia quase trágica, lembrei-me do livro Que Fazer?, do próprio Lenin, que estudei em uma leitura conjunta, acompanhada de debates intelectuais calorosos. É o meu jeitinho, só abro a boca se for pra pregar pra convertido.
Mais um exemplo do meu detestável comportamento é um que cometo durante a escrita desse texto, aliás. Sentado em um ônibus meio vazio, em uma viagem de cinco horas para Minas Gerais, ouço duas pessoas falando — bobagens, em maioria — sobre lei Maria da Penha, polícia militar e violência. Eu poderia me juntar a eles e tentar plantar alguma sementinha questionadora, afinal, os desconhecidos me parecem bastante amigáveis. No entanto, confesso que preferiria levar um soco no rosto a me envolver naquela conversa. Garanto que seria mais confortável. Vou continuar, então, escrevendo sobre comunismo aqui. Afinal, qual o sentido de ter lido Ribeiro, Butler, Fanon, Davis…?
Tendo em vista a minha flagrante hipocrisia, também sinto-me vexado ao assumir-me socialista perante os outros, perante “os meus”. Em síntese — e de forma um tanto simplista, antecipando as críticas —, o marxismo defende a união indissociável entre teoria e prática para, coletivamente, gerarmos mudanças sociais revolucionárias. Desse modo, não é muito bem visto alguém se autoproclamar comunista, de peito estufado, apenas por reconhecer a necessidade de uma revolução. É preciso se organizar com outras pessoas, colocar a mão na massa, pavimentar o caminho para um mundo melhor. E não se faz isso apenas lendo alguns livros.
Certa vez, me deparei com um monólogo de Ana Paula Arósio em Hilda Furacão. Nele, ela reflete sobre como é fácil amar o povo, a humanidade, mas como é difícil amar as pessoas individualmente. Senti-me como o personagem de Rodrigo Santoro ouve a Hilda, embasbacado, exposto. Vejo o potencial revolucionário nas pessoas ao ouvir suas reclamações e insatisfações, e me compadeço profundamente com seus sofrimentos. Mas criar uma conexão para despertar esse potencial em alguém é demais para mim.
Sinto-me o pior comunista do mundo, se ainda puder me considerar um. Ao menos, sou capaz de admitir minha insuficiência.
DEFESA
Após estar debilitado com tamanha autocrítica, preciso me defender um pouco.
Primeiro, digo que já participei de um par de protótipos de organização popular. Durante a pandemia, entre dezenove e vinte anos, integrei um canal grande no discord sobre comunismo. Nessa experiência, fiz leituras conjuntas de diversas obras de esquerda radical, inclusive do famoso Manifesto. Li Paulo Freire, Martha Harnecker, Florestan Fernandes, Aimé Césaire, e muitos outros… Foi nesse grupo que me radicalizei verdadeiramente. Somado a isso, dava algumas aulas virtuais de biologia para os membros do canal que eram vestibulandos, sempre com caráter crítico. Nesse canal, também escrevia e editava conteúdos para uma página no Instagram — sim, sempre encontrei nas palavras as minhas principais ferramentas.
Impulsionado pela recém radicalização e pelo retorno das aulas presenciais, tentei ressuscitar o coletivo LGBTQIAPN+ do meu Centro Acadêmico, mas ele não vingou. Até fizemos algumas coisas legais no curto tempo que tivemos, como receber os calouros, mostrando-os que suas identidades seriam acolhidas e respeitadas. Realizamos alguns debates, organizamos uma festa drag e bolamos estratégias de acolhimento de denúncias de abuso, homofobia e transfobia. O coeltivo acabou se dissipando, mas foi uma boa experiência.
Devo acrescentar que minha revolta contra o capitalismo continua intacta. Dizem que envelhecer nos torna mais conservadores, mas não parece ser o meu caso. A chama da crítica, fundamentada no materialismo histórico-dialético, permanece acesa em mim, inabalável.
Porém, as garras neoliberais me fisgaram brutalmente. Após concluir a graduação, o peso da vida se intensificou e parei de militar desde então — se é que posso chamar o pouco que fiz de militância —. O meu comunismo perdeu para mudança de casa, trabalho de pesquisa com dedicação exclusiva, mais responsabilidades domésticas e mais tempo em transporte público. E agora, ele perde também para a escrita. Meu tempo livre é escasso, assim como meu dinheiro. Já não leio sobre o assunto com a mesma frequência de antes. A essa altura, arrumar uma tarefa a mais para a qual me dedicar seria um martírio, e me sinto impotente e culpado por isso, mesmo ciente de que sou vítima de uma grande máquina.
VEREDITO
Tenho encontrado na heterogeneidade do proletariado o alívio para minha culpa. De fato, não suporto conversas com conservadores, que abominam certos fatores da minha existência. Portanto, é evidente que não tenho paciência para ajudá-los a despertarem sua consciência de classe. Felizmente, porém, a classe trabalhadora não é composta apenas por pessoas assim. Aliás, eu mesmo pertenço a ela.
E, talvez inconscientemente, sabia disso quando decidi unir-me a outros jovens e pessoas LGBT+. Pois a classe trabalhadora também é jovem e LGBT+. Enxrgar o povo como uma massa homogênea é um grave equívoco — mais um erro na esquerda que sei apontar! —, e pode estar nos impedindo de lutar por um mundo melhor.
Talvez, no futuro, eu arrume uma maneira eficaz de me coletivizar e fazer política de rua. Mas evito prometer qualquer coisa, pois a vida é dura e, constantemente, me vejo equilibrando com dificuldade entre a autocrítica e a autocompaixão. Afinal, como todo proletário, faço o que posso.
Camarada, comigo é o contrário, eu nunca me senti mal em dizer que sou comunista, porque não posso dizer que sou capitalista, uma vez que não sou burguesa e não detenha nada além da minha força de trabalho da viver. O trabalho de base é feito como trabalho de formiguinha, precisa de um todo e compromisso que já entramos em desvantagem. Esse mesmo termo "desvantagem" também apareceu para mim em uma fala da minha babá de umbanda, no terreiro, que é um terreiro lgbt, falamos muito sobre questões políticas na nossa vida, e a babá pontuou, em qualquer lugar que nos colocamos já estamos em desvantagem, então precisamos dos nossos, da comunidade. Entendo completamente suas questões, mas se olhar um pouco pelo viés psicanalitico, vera que ninguém é tão importante assim, então passei e me cobrar menos e fazer o que tem pra hoje, e sempre sonhando com o mundo comunismo. O horizonte está lá, tem dias que o caminho é sozinho, acompanhado, mas sempre tem mais gente na caminhada. Não sei se ficou claro o que quis dizer mais, mas não tenha vergonha do que você acredita e quer se sentir livre para dizer quem é, até porque se do outro lado estiver um nazifascista ou um alienado conservador, não se importe, do mesmo jeito que ele nos vê como aberrações, sabemos que as aberrações são eles.
Queria te mandar um áudio mas vou fazer o que eu posso com o espaço do comentário! Tenho uma arte na minha parede que diz “jamais cair na tentação de odiar o povo” e pra mim começa aí a dificuldade com o comunismo, meu calcanhar de aquiles é lidar com as pessoas, com as suas incoerências, alienações, dificuldades, pensar que conseguem ser pedras gigantes no caminho de um horizonte melhor para elas mesmas é suficiente para eu não saber dialogar direito, ser uma péssima panfletaria principalmente. Vejo a esquerda numa intensa briga de ego e não consigo acreditar de verdade que vamos conseguir influência suficiente para uma revolução, então COMO me denominar comunista por aí se o povo, muitas vezes, me afasta da construção coletiva e também sentindo no fundo do peito que a revolução não passa de um sonho infantil. Depois de muitas crises sobre isso tenho feito as pazes com a ideia de que o que me faz comunista não é nada dessas coisas, é a fé (com toda a carga mesmo do termo) na construção coletiva, a noção de que nada somos sem nós, mesmo que nosso grupo tenha infinitos nós para desatar, todos estão fortemente apertados pelo capital. Meu inimigo é a crueldade capitalista, e se eles não tem vergonha de vestirem essa camisa por que eu teria de vestir o seu avesso? As vezes brinco que sou comunista não praticante (ao contrário de você me falta respaldo teórico, mas sobra militância prática), mas no fundo a gente ouve, fala, vive, pensa fundamentado no comunismo, e talvez seja sobre isso no fim das contas